Vai faltar dendê em Salvador: produto já não existe nas fábricas e estoque está escasso
Segundo o livro de Apocalipse, o fim do mundo será precedido por mortes, epidemias, pragas, terremotos e outras ocorrências assustadoras. Isso porque a Bíblia não foi escrita na Bahia. Acaso os últimos capítulos da escritura sagrada fossem concebidos aqui, diante das influências de matriz africana, um item estaria na lista dos sinais de que estaríamos próximo ao fim dos tempos: a falta do azeite de dendê.
Pois bem. Vos digo que o nosso óleo sagrado, o líquido precioso que serve para preparar diversas iguarias servidas aos orixás (e às pessoas) está prestes a não ser encontrado na Boa Terra. Quem garante a informação são as próprias baianas de acarajé, das principais consumidoras finais do produto, as responsáveis por colocar no nosso sangue (via bolinho frito) o azeite amarelo-avermelhado, que aqui chega a ser mais valorizado que o de oliva.
Desde a semana passada, quando o CORREIO publicou duas reportagens e iniciou uma campanha para ajudar as baianas que perderam seu sustento devido a pandemia, elas já haviam reclamado da alta dos preços de diversas matérias primas do bolinho: o feijão fradinho, a cebola e o dendê. Esse último tinha aumentado de forma exorbitante. Em quatro meses, o balde com 16 litros havia passado de R$65 para R$120, um aumento de 85%. Elas ainda não haviam entendido os motivos para isso.
O CORREIO foi atrás e desfez o mistério. Os distribuidores do óleo e os donos de boxes da Feira de São Joaquim, por onde boa parte do produto é escoado, afirmam que o problema foi a safra desse ano, que produziu muito abaixo do esperado. Os municípios da Costa do Dendê tiveram problema na produção. A alta dos preços só revela o início da escassez. A ameaça de faltar dendê na terra do dendê é real. Sem dendê, não há acarajé, abará ou moquecas.
Na verdade, o azeite já acabou nas fábricas, explica um dos principais distribuidores locais. O que existe hoje, diz ele, é o que foi estocado por eles próprios, pelos estabelecimentos e pelas baianas de acarajé. Marcos Parente, da empresa Sabor Baiano, ainda traz outra má notícia. Além da escassez da produção local, um possível substituto, o azeite do Pará, tem sido colocado apenas para exportação.
“O problema do azeite é que a produção regional foi muito abaixo do esperado. Já acabou. A gente tá na entressafra, que só vai normalizar em meados de dezembro. E o outro ponto é que o azeite que vem do Pará, que também é um azeite de qualidade, está sendo exportado. São grandes empresas voltadas para a exportação. Em virtude do dólar, eles estão exportando. A gente tá enfrentando a escassez e tá chegando a ponto de faltar. Só não chegou ao extremo porque ainda há um estoque, mas em breve vai faltar”, avisa.
Em outros tempos, o dendê já haveria terminado. Em virtude do novo coronavírus, o consumo reduziu bastante nos últimos meses. Mas, com a gradual abertura da economia e o recente retorno das baianas de acarajé (muitas estão entregando delivery ou praticando drive-thru), o produto voltou a ser requisitado. “A gente está regulando os preços e repassando gradativamente. Mas vai chegar uma hora que não vai ter como segurar o preço e tampouco repor a mercadoria. Hoje já temos dificuldade para comprar na fábrica”, afirma Marcos Parente.
A crise das baianas de acarajé se torna ainda mais grave. Como mostramos na semana passada, 80% das 2 mil baianas que trabalham nas ruas de Salvador estão paradas. As que estão tentando voltar a vender agora têm outro empecilho. Com os preços exorbitantes, muitas sequer têm condições de comprar o produto para mergulhar a massa do acarajé.
“Justamente quando as baianas estão retornando, depois de quatro meses paradas, acontece mais esse problema. Um dos produtos mais importantes do acarajé subiu de preço dessa forma. As que conseguem comprar não vão conseguir repassar essa alta para os clientes. As pessoas estão sem dinheiro. Foi mais de 80% de aumento. A informação que tivemos é que a safra foi abaixo do esperado. Estamos vendo ainda o que vamos fazer. Precisamos de ajuda!”, afirma Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Beiju, Mingau e Similares (Abam).
Ciclo de produção
Até chegar às baianas (mas também aos supermercados, restaurantes ou à sua casa), o dendê consumido na Bahia segue um ciclo de produção. A maior parte do azeite usado por nós é produzido aqui mesmo, na verdade em uma região composta por municípios da Costa do Dendê. Uma das fábricas de azeite afirma que a safra caiu entre 20% e 30% em relação aos anos anteriores. Só que, além da produção baixa, o período sem que ela ocorra se estendeu.
Um dos socios proprietários da fabricante Ki Dendê, Cleiton Carlos Magalhães Luz, confirma que a entressafra desse ano tem sido severa. Todo ano há entressafra, diz ele, mas esse ano o fruto do dendê tá mais escasso. “Sempre houve entressafra, mas não tão forte como está sendo”. E ainda há outro agravante. A compra do dendê para produção de biodiesel por parte da Petrobrás, diz Cleiton, só aumenta a cada ano.
“Tanto que, quando ocorre entressafras maiores, a gente sustenta com azeite do Pará. Temos carretas para trazer o produto de lá. Mas aí entrou a Petrobrás comprando milhares de toneladas para produzir biodisel. Começou a comprar forte no Pará e também na Bahia. Juntou com a entressafra e aí tá faltando. Sobrou para o ramo da culinária.Tudo o que se produz no momento não dá para o consumo das pessoas”, explica Cleiton. A Ki Dendê tem repassado a garrafa de 5 litros de azeite por R$36 para os distribuidores. Meses atrás, o mesmo produto saía da fábrica por R$24.
O resultado se vê, por exemplo, nos estabelecimentos que abastecem as baianas de acarajé. Quatro meses atrás, o box Roni Massa Pronta, que além de dendê fornece massa de acarajé em São Joaquim, vendia 16 litros de azeite por R$65. Agora sai por R$120. “Tá complicado. A gente feirante compra pra revender. Pelo que os fornecedores estão dizendo vai faltar”, afirma Roniere Santos Pereira, dono da loja. “Ainda tem um pouco no estoque, mas os novos pedidos não chegam mais”.
Costa do Dendê
Conhecida pelas praias paradisíacas, a região do Baixo Sul, a Costa do Dendê, é formada por municípios como Valença, Aratuípe, Igrapiúna, Cairu, Camamu, Taperoá, Nilo Peçanha, Ituberá e Maraú. Nesta região, os agricultores familiares vivem principalmente da produção deste fruto e contribuem para que o Brasil se destaque no cenário internacional. O país é, atualmente, o terceiro produtor de azeite de dendê ou óleo de palma da América Latina. A Colômbia, maior produtora, é seguida pelo Equador.
O fruto originário da África chegou à Bahia durante o período colonial, adaptando-se rapidamente ao litoral baiano, que tem condições climáticas adequadas para o desenvolvimento dessa cadeia produtiva. Dos dendezeiros são extraídos dois tipos de óleos: o azeite de dendê, conhecido também como óleo de palma e o óleo de palmiste, muito utilizado na fabricação de cosméticos.
Como ajudar as baianas
A partir do último final de semana, dada a importância social e cultural do ofício, o CORREIO passou a abraçar a causa das baianas de acarajé. A campanha #colecomasbaianasdeacaraje surgiu diante do apelo de muitas dessas mulheres que sustentam suas famílias com o bolinho frito no dendê. Com a pandemia, a maioria delas deixou de vender suas iguarias nos fins de tarde. Iniciamos então um projeto que engloba grandes reportagens sobre o acarajé e ações para ajudar as baianas através de doações imediatas.
Segundo a Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Beiju e Similares (Abam), das mais de 2 mil baianas que vendem seus acarajés em Salvador, no momento cerca de 80% estão paradas ou fora de seus pontos se virando como podem. As que trabalham nas praias (no total 750) são as mais prejudicadas. Essas perderam quase que 100% dos clientes e não sabem quando vão poder retornar.
Ajude depositando qualquer quantia na seguinte conta bancária (as doações serão revertidas em cestas básicas).
ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Beiju e Similares.
Caixa Econômica Federal
Código Operação: 003
Ag: 4802
Conta corrente: 000056-1
CNPJ: 02561067000120
Com informações do Correio da Bahia
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