Torneiras secas: idosos quebram quarentena para conseguir água potável
Interrupção no abastecimento de água preocupa moradores em Salvador
É do sofá de casa que a aposentada Edna Gomes, 70 anos, assiste todos os dias aos médicos ensinando a como lavar as mãos e como repetir esse hábito várias vezes por dia para diminuir a transmissão do novo coronavírus. A idosa suspira e pensa ‘bem que eu queria’, mas na torneira da casa dela não cai água desde o início de fevereiro. Cogitar ficar quase dois meses sem água já é o bastante para assustar muita gente, mas essas interrupções no abastecimento têm preocupado também os especialistas.
Um levantamento feito pelo CORREIO apontou que nos últimos seis meses o abastecimento de água foi interrompido seis vezes em algumas localidades de Salvador. Os motivos variam desde manutenção na rede, obras na cidade, queda de energia e rompimento de adutora. Mas em bairros como Arenoso, São Marcos, Fazenda Coutos, e Paripe esse problema é recorrente.
Em fevereiro, quando começou a interrupção no abastecimento do Arenoso, Dona Edna procurou a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) e foi orientada a esperar por uma equipe de manutenção. Os dias passaram, o tanque de 500 litros da residência secou, e a idosa começou a comprar garrafões de água mineral, a R$ 8 cada. O salário ficou apertado no final do mês, e a solução foi usar a criatividade.
“Eu perdi as contas de quantas vezes eu liguei para a Embasa. Eles mandavam uma equipe, o pessoal vinha, mas não resolvia nada. Está assim há dois meses. Não tenho como comprar água mineral o mês todo, então, estou trazendo água da casa de minha irmã. Ela mora em Tancredo Neves. A gente enche as garrafas, eu trago, e quando chego em casa fervo para poder beber e cozinhar” disse.
A conta, por outro lado, nunca atrasa. A do mês de abril já chegou. A idosa vai pagar R$ 62,31, mas ainda não sabe pelo quê. “Não caiu água na torneira o mês inteiro. Na madrugada desta terça-feira, por volta das 3h, finalmente chegou. Ouvi a bomba do tanque funcionando, mas 6h parou de novo”, disse.
Ela não é a única a quebrar a quarentena para buscar água fora de casa. A agente de portaria e também idosa Leodora Brito, 61, tem recorrido aos familiares que moram em Cajazeiras para abastecer os baldes. Os pratos estão sendo lavados com água de pote e o chuveiro não é ligado há tempos.
“A gente enche os baldes e vai usando. A água da roupa lavada ou da chuva, por exemplo, a gente usa para dar descarga no vaso sanitário. É tudo muito difícil. A gente não tem mais facilidade para ficar fazendo essas coisas e a conta continua chegando. Esse mês veio de quase R$ 70”, disse.
No começo da semana, a Embasa informou que seis bairros do Subúrbio Ferroviário ficariam desabastecidos por conta de uma manutenção emergencial em uma válvula do reservatório de Ilha Amarela. No começo de março, 94 bairros também ficam sem água por conta de outro serviço da concessionária. Algumas dessas operações são rápidas e os consumidores nem sentem os impactos, mas outras são sentidas e quase se tornam parte da rotina.
A técnica de enfermagem Rosangela Leal viveu uma emoção há alguns dias. “Levantei para ir trabalhar e não tinha água. Liguei para alguns amigos, mas o bairro todo estava assim. Os baldes já estavam vazios porque já não tinha água há dois dias. Tive que pegar a água que estava na geladeira para tomar banho e poder ir para o plantão. Pense num desespero. Agora eu dou risada, mas na hora a gente não sabe o que fazer”, contou.
Ela disse que na rua Paracaína, em São Marcos, onde mora, o abastecimento faz plantão de 12h por 72h. A água fica até três dias sem cair. “Eu já nem sei quanto eu gastei comprando garrafões de água mineral. Quando a gente liga eles dizem que é por causa de uma manutenção na rede, a resposta é sempre essa, e pede para a gente aguardar. Como aqui tem muito comércio, eles mandam carro-pipa, mas não resolve”, contou.
Moradores das comunidades do Coroado, em São Marcos, e do Bate-Coração, em Paripe, também reclamaram que estão sem água. Em Fazenda Coutos, Plataforma e Periperi as queixas são de que a interrupção no abastecimento acontece com frequência.
Problema de todos
O desabastecimento de água é um problema sério e, nos últimos meses, com o advento do novo coronavírus, a preocupação com a falta d’água foi redobrada. Pessoas acima de 60 anos fazem parte do grupo de risco e, ao sair de casa, eles estão mais expostos ao perigo de contrair a doença.
Mesmo ao tentar reaproveitar a água da chuva para evitar a rua é preciso cuidado. A médica sanitarista e professora da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Elaina de Paula, aconselha as pessoas a observarem com atenção a qualidade da água antes de fazer uso, principalmente, se o destino é o consumo.
“O ideal é que houvesse água potável para as pessoas para que a população não tivesse que recorrer à água da chuva, mas, nessas situações, ela pode ser usada para higienizar a casa e na descarga, por exemplo. Se for para o consumo precisa ser fervida antes, tanto para preparar alimentos como para beber. Se tem características visuais e físicas não compatíveis com a água potável, ou seja, coloração diferente e odor, ela deve ser descartada porque esses podem ser indícios de contaminação”, contou.
A médica também chamou a atenção para o consumo logo após a retomada do serviço em casos de manutenção na rede de abastecimento. “Os primeiros jatos, geralmente, tem uma coloração mais escura e por isso devem ser descartados, mas, dependendo da situação, essa água pode ser usada também na descarga”, disse.
O Ministério da Saúde, a Secretaria Estadual da Saúde (Sesab), e cerca de dez infectologistas ouvidos pelo CORREIO reforçam que é importante ter água e sabão em casa para evitar o avanço da Covid-19. Lavar as mãos é o jeito mais eficiente de barrar a proliferação da doença enquanto não há uma medicação para combater o novo coronavírus. A higienização pode ser feita também com álcool gel 70%, precisa durar 20 segundos e contemplar a palma, dorso, entre os dedos, unhas e o pulso.
Procurada, a Embasa afirmou que em nota que “não tem conhecimento de clientes que estejam sem abastecimento de água há um mês. Caso haja algum cliente nessa situação, a empresa orienta que entre em contato com os canais de atendimento, munido de evidências que comprovem essa situação”.
Sobre a conta de água, o titular da Superintendência de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), Filipe Vieira, informou que os clientes têm direito a desconto pelos dias em que o abastecimento foi interrompido, além de reembolso das despesas geradas por esse problema.
“O controle deve ser feito com base na medição do relógio (hidrômetro). Se não tem água não teria uma variação na medição do relógio, o consumidor deveria pagar a franquia mínima, mas mesmo esse consumidor tem direito a desconto. Todos os gastos que os consumidores estiverem tendo em razão dessa falta de água devem ser registrados. As notas fiscais devem ser guardadas para pedir reembolso para a Embasa depois”, afirmou.
Ele frisou que é importante registrar na Embasa os dias em que falta água e anotar o número do protocolo. Quem encontrar dificuldade para conseguir o desconto ou reembolso pode entrar em contato com o Procon através do portal. Por conta da quarentena, os atendimentos estão sendo realizados apenas online.
Confira as 94 localidades que tiveram interrupção no abastecimento no começo do mês:
Ilha de Maré
Ilha dos Frades
Ilha de Bom Jesus dos Passos
Itapuã
Mussurunga
São Cristóvão
Vale dos Lagos
Jardim das Margaridas
Trobogy
Nova Brasília
Canabrava
Jardim Nova Esperança
Sete de Abril
Castelo Branco
Vila Canária
Jardim Cajazeiras
Pau da Lima
São Marcos
São Rafael
Liberdade
Pero Vaz
Curuzu
Dom Avelar
Porto Seco Pirajá
Santa Mônica
IAPI
Retiro
CAB
Novo Horizonte
Sussuarana
Granjas Rurais Presidente Vargas
Calabetão
Jardim Santo Inácio
Mata Escura
Arraial do Retiro
Tancredo Neves
Arenoso
Cabula VI
Lobato
Ribeira
Massaranduba
Bonfim
Campinas de Pirajá
Marechal Rondon
Alto do Cabrito
Capelinha
Boa Vista de São Caetano
São Caetano
Fazenda Grande do Retiro
Bom Juá
Cabula
Pernambués
São Gonçalo
Resgate
Narandiba
Saboeiro
Doron
Periperi
Pirajá
Praia Grande
Águas Claras
Cajazeiras
Fazenda Grande
Jaguaripe
Boca da Mata
São João do Cabrito
Calçada
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