‘Caixa misteriosa’ de navio nazista aparece em praia da Bahia

Era início da manhã de terça-feira, dia 27 de julho, quando a tranquilidade habitual da Praia de Santo Antônio, em Mata de São João, litoral norte da Bahia, se quebrou. Acostumado a acordar cedo e logo olhar para o mar, Antônio Silva* estranhou uma aglomeração que se formava na areia. A cisma aumentou quando uma viatura da Polícia Ambiental chegou para averiguar a situação. A causadora de tamanho fuzuê estava no centro da rodinha de curiosos: uma caixa misteriosa que a maré havia trazido naquela manhã.

“É um baú do tesouro”, teorizou uma das testemunhas. “Que nada! É só um pedaço de madeira”, retrucou um mais cético. “Rapaz, nem uma coisa nem outra: isso só pode ser maconha”, especulou, esperançoso, um banhista que passava pelo local. Mas, ninguém ali chegou nem perto da verdadeira origem do fardo pesando mais de 200 quilos: nem tesouro, nem maconha e nem madeira. O material é parte da carga de um navio nazista afundado no dia 4 de janeiro de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial.

Sem saber do que se tratava a tal caixa, ninguém ousou tocar o objeto. Só mesmo a chegada das autoridades encorajou os curiosos, que se aproximaram e perceberam que se tratava de borracha. Restava, agora, tirá-lo dali e descobrir qual era origem – tarefa, aliás, difícil.

“Pegaram até um carrinho de mão, mas não conseguiram movê-lo do lugar”, relatou Antônio Silva. Segundo ele, até a manhã desta sexta-feira (30), a peça ainda não tinha sido retirada do local onde a maré a deixou.

Mesmo assim – e à distância – uma explicação começou a se desenhar. Ela envolve nazistas, armas, piratas e até o óleo que contaminou as praias do litoral nordestino em 2019 Quem desvendou o mistério foi o oceanógrafo Carlos Teixeira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Que história é essa?
Não é a primeira vez que objetos como o fardo de borracha encontrado na Praia de Santo Antônio aparece no litoral. Desde agosto de 2018, fardos parecidos foram encontrados em praias do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e até na Flórida, nos Estados Unidos.

Objeto deu as caras pela primeira vez no Ceará (Foto: Reprodução)

Na época, o povo achou estranho, mas ninguém foi a fundo averiguar de onde aquilo tinha surgido. Mas tudo mudou em agosto de 2019, quando manchas de óleo começaram a aparecer nas mesmas praias em que os fardos foram encontrados um ano antes.

“Pensamos que poderia haver alguma ligação entre esses dois fatos”, relembra Carlos Teixeira.

Pesquisadores deram uma olhada em um dos fardos encontrados e notaram um detalhe que, antes, tinha passado despercebido: uma inscrição dizendo “Made in Indochina”. O problema é que essa colônia francesa foi desfeita em 1954, dando lugar a países como Laos, Camboja e Vietnã. Ou seja: o que quer que fossem os objetos, eles tinham sido produzidos há, ao menos, 65 anos.

Intrigado, o professor resolveu pesquisar mais para entender o que uma borracha indochinesa fazia no litoral nordestino. Após algumas horas na frente do computador, Carlos encontrou um vídeo de 1944 que mostrava pescadores recolhendo objetos parecidos nas águas nordestinas. Os fardos em questão eram a carga de um navio do Exército Nazista que foi afundado no dia 4 de janeiro daquele ano, no auge da Segunda Guerra Mundial.

SS Rio Grande
Em um artigo, o professor Carlos Teixeira explica o episódio. Segundo ele, manter o Exército Nazista, uma das maiores máquinas de guerra da história, não era tarefa fácil e demandava muitos recursos. A borracha, usada nos pneus e armas, não era produzida no território alemão e precisa ser importada de lugares como a Indochina.

Só que percorrer os 10 mil quilômetros que separavam esses países não era tarefa fácil. Para isso, os alemães utilizavam navios chamados “Blockade Runners”, que eram ágeis e conseguiam furar os bloqueios marítimos feitos pelos Aliados. Também costumavam usar rotas alternativas, contornando a América do Sul e chegando à Europa pelo Oceano Atlântico.

Embarcação foi construída em 1939 (Foto: Reprodução)

Mas nem sempre a estratégia dava certo e, naquele 4 de janeiro de 1944, o SS Rio Grande – o navio alemão usava um nome em português para confundir os inimigos – foi interceptado pelo contratorpedeiro USS Jouett e pelo cruzador USS Omaha no mar entre Natal e a Ilha de Ascensão, no nordeste do Brasil, ponto estratégico para os Aliados – rivais dos nazistas.

Os alemães tentaram fugir, mas foram abatidos pela Marinha Americana. Uma pessoa morreu, 71 ficaram feridas e o navio, junto com sua carga, foi parar a 5,7 mil metros de profundidade – e lá ficou até agosto de 2018.

‘Oi, sumida!’
O que trouxe a carga de volta à superfície ainda é mistério, mas há duas teorias principais: uma a de que o desgaste natural abriu um buraco no porão do navio, deixando a borracha escapar. A outra, mais aceita, especula que um grupo de piratas teria ido até o local do naufrágio para recuperar um outros itens do SS Rio Grande: 500 toneladas de estanho, 2.370 de cobre e 311 de cobalto, sendo este último o objeto de desejo dos piratas.

No processo de retirada do metal nobre, a borracha, que boia, teria escapado. Então, as correntes marítimas completaram o serviço e, desde então, esses “fardos misteriosos” têm aparecido nas praias do litoral nordestino.

No início de 2018, a grande procura por carros elétricos fez o preço do cobalto, utilizado nas baterias, chegar a 90 mil dólares a tonelada, um aumento de 150%, causando o que a BBC chamou de “nova febre do ouro”. Isso teria estimulado os caçadores de tesouro a irem até o naufrágio para recuperar a carga que estava avaliada, na época, em quase 30 milhões de dólares.

Como o navio está em águas internacionais, não há jurisdição sobre ele. É uma terra, ou melhor, um mar sem lei. O problema seria chegar lá, pois esse é o naufrágio mais profundo já visitado por humanos. O Titanic está a pouco mais de 3 mil metros de profundidade, contra 5,7 mil do SS Rio Grande. Para chegar lá, só com submarinos.

Riscos
Se alguém tocou no objeto e anda preocupado, não é para tanto, já que o látex não é tóxico. O problema é o tamanho e o peso do material, que pode provocar acidentes tanto no mar quanto na areia.

Já para os animais, o risco é maior. Fragmentos da pilha de borracha podem se desprender e serem engolidos, causando engasgos. Por conta disso, o pesquisador Carlos Teixeira sugere que, ao encontrar um desses fardos, as autoridades sejam contatadas para retirada do material do mar ou da areia.

*Nome alterado a pedido da fonte

Com informações do Correio da Bahia

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